Quem gosta de ler talvez conheça bem esse fenômeno: livros que aparecem “do nada”. Estavam esquecidos numa estante, vieram de presente, foram comprados por impulso e nunca lidos… até que, um dia, nos chamam. Foi assim que De repente, nas profundezas do bosque, de Amos Oz, surgiu para mim.
Eu não sabia exatamente sobre o que era a história. Comecei a leitura movida por curiosidade — e terminei envolvida por reflexões profundas. O livro fala sobre um vilarejo onde todos os animais desapareceram misteriosamente. As crianças crescem sem conhecer o som de um cachorro ou a presença de um pássaro. Mas a questão mais inquietante é o silêncio coletivo, o tabu, a recusa em falar sobre o que aconteceu.
É como se ninguém mais lembrasse, como se aquilo nunca tivesse acontecido. Mas o silêncio é incômodo. Há uma ausência, um vazio que atravessa o cotidiano das pessoas — mesmo quando elas tentam fingir que está tudo bem. Elas não falam, não explicam, mas sentem falta. E, aos poucos, isso transborda.
E, como psicóloga, não consegui deixar de pensar no quanto isso se conecta à nossa vivência emocional — especialmente quando falamos sobre compaixão, evitação, aceitação e discriminação do diferente.
Exclusão, silêncio e o “diferente”
“De tanta solidão, Neman aprendeu a falar com os animais nos seus idiomas. Passados alguns anos, quando toda a aldeia começou a considerá-lo doente do relincho e a se afastar dele e a atirar nele pedaços de telhas e pedras, ele encontrou uma caverna nas montanhas e passou a viver sozinho, se nutrindo de cogumelos e frutos do bosque”. (Amos Oz)
No livro de Amos Oz, há uma crítica social potente: o medo do diferente, o silenciamento das experiências e a exclusão de quem não se encaixa nas normas coletiva.
Certos personagens são vistos como ameaça — não porque sejam perigosos de fato, mas porque carregam lembranças, questionamentos ou formas de viver que confrontam a narrativa oficial da comunidade. São tratados com desconfiança, rejeitados ou até hostilizados por manter viva uma memória que o grupo prefere esquecer.
Esse processo de marginalização lembra muitos contextos em que pessoas com vivências diversas são invisibilizadas ou rejeitadas. Mesmo o custo disso sendo alto: desumanização, solidão, repetição da dor e reforço de sistemas opressores.
A esquiva experiencial
“Uma vez, à tardinha, cheio de coragem, Mati perguntou ao pai por que as criaturas tinham desaparecido da aldeia. O pai não se apressou em responder. […] disse isso: Veja. Mati. É assim. Certa vez aconteceram aqui coisas de todo tipo. Coisas das quais não podemos nos orgulhar. Mas nem todos são culpados. É claro que não somos todos culpados na mesma medida. Fora isso, quem é você para nos julgar? Você ainda é pequeno. Não julgue. Você não tem nenhum direito de julgar os adultos. E, afinal, quem exatamente contou a você que um dia existiram animais aqui? Pode ser que sim, quem sabe. E pode ser que nunca tenham existido. Pois já passou muito tempo. Esquecemos, Mati. Esquecemos e pronto. Deixa pra lá. Quem ainda tem força para lembrar?” (Amos Oz)
Uma das primeiras coisas que eu associei ao ler o livro, além da discriminação, foi o conceito de esquiva experiencial da ACT. Chamamos de esquiva experiencial a tendência que temos de tentar controlar, suprimir ou afastar pensamentos, sentimentos e memórias dolorosas. É como se, ao não falar sobre algo, ao não pensar ou sentir, isso simplesmente deixasse de existir. Mas, na prática, o que costuma acontecer é justamente o contrário: o que tentamos evitar com tanta força acaba encontrando outras formas de se manifestar, aumentando o sofrimento e a dor.
O livro ilustra bem essa tentativa das personagens de fingir que algo não existiu — e o custo que isso tem. O sofrimento negado não desaparece. Ele só muda de forma. E, quanto mais tentamos silenciar, mais ele pulsa. Não falar sobre os animais para as crianças, não fez com que esquecessem do tempo em que ouviam o canto dos pássaros ou o latido dos cachorros.
Na ACT, o convite é diferente: não é sobre apagar o passado ou evitar o que sentimos, mas sim sobre desenvolver uma nova relação com nossas experiências. Uma relação mais aberta, curiosa e gentil. Ao invés de fugir, acolher. Ao invés de lutar contra o que sentimos, seguir em direção ao que realmente importa — mesmo quando sentimentos, pensamentos e sensações desconfortáveis caminham ao nosso lado.
Essa também é uma forma de autocompaixão: reconhecer que o desconforto é parte da experiência humana, que não estamos sozinhas.
De repente, nas profundezas do bosque me trouxe essa lembrança. Às vezes, o que a gente tenta esquecer é justamente aquilo que precisa ser escutado com mais cuidado.
Humanidade compartilhada: você não está sozinha
“Todos nós sem exceção nos assustamos às vezes e até mesmo ficamos apavorados, e às vezes todos ficamos cansados, ou com fome, e cada um de nós gosta de certas coisas e detesta outras, que nos inspiram temor ou aversão. Além disso, todos nós sem exceção somos sensíveis ao extremo. […] e todos nós dormimos e acordamos e de novo dormimos e acordamos, todos nós nos empenhamos muito para que fique tudo bem para nós, não muito quente nem frio, todos nós tentamos a maior parte do tempo nos preservar e nos guardar de tudo o que corta, morde e fura. Pois cada um de nós pode ser amassado com facilidade. […] todos nós nos esforçamos a maior parte do tempo em tomar o máximo cuidado possível contra a dor e o perigo, e apesar disso nós nos arriscamos muito sempre que saímos […].” (Amos Oz)
Um dos pilares da autocompaixão, segundo Kristin Neff (2003), é o conceito de humanidade compartilhada: a ideia de que todos nós erramos, sofremos e enfrentamos dificuldades. Ou seja, sofrer não é um defeito pessoal. É uma parte essencial da condição humana.
Quando esquecemos disso, caímos facilmente em isolamento emocional — aquela sensação de “só eu passo por isso”, “tem algo de errado comigo”, “ninguém entenderia”. Esse isolamento, muito presente em experiências de sofrimento mental, acaba por aumentar ainda mais o peso da dor.
Assim como na história do vilarejo, nossas dores também são coletivas, e reconhecer essa interdependência pode aliviar a autocrítica e restaurar um senso de pertencimento.
Como se reconectar com a humanidade compartilhada?
Se você já se sentiu sozinha na sua dor, aqui vão alguns lembretes e sugestões práticas:
🔸 Reconheça que você não é a única. Mesmo que sua dor seja única na forma, ela é universal no conteúdo. Todo ser humano sofre.
🔸 Questione as histórias que sua mente conta e as histórias que já contaram sobre você. Você não é o que pensa. Seus pensamentos não definem seu valor.
🔸 Busque conexões genuínas. Conversar com alguém de confiança, participar de grupos de apoio ou ler histórias reais pode ajudar a dissolver o isolamento emocional.
🔸 Pratique a desfusão. Uma ferramenta da ACT para ajudar a observar os pensamentos sem se fundir a eles. Exemplo: em vez de dizer “sou fraca”, diga “estou tendo o pensamento de que sou fraca”. Isso muda tudo.
Conclusão: entre o silêncio e o vínculo
De repente, nas profundezas do bosque fala sobre ausência, silêncio e medo do diferente. Mas também fala sobre coragem, escuta e a busca por sentido. É uma história que nos lembra da importância de olhar para o que foi calado — dentro de nós e nas relações.
Na vida real, a escolha entre silenciar a dor ou falar sobre ela também está nas nossas mãos. E talvez, ao compartilhar, ao acolher, ao lembrar que não estamos sozinhas, a gente encontre algo que o livro também sugere: a possibilidade de um novo começo. Caso precise de ajuda nesse processo, entre em contato, será um prazer te acompanhar!
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Referências:
Amós Oz (2007).
Harris, R. (2009). ACT made simple: An easy-to-read primer on acceptance and commitment therapy. New Harbinger Publications.
Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (1999). Acceptance and commitment therapy: An experiential approach to behavior change. The Guilford Press.
Luoma, J. B., Hayes, S. C., & Walser, R. D. (2012). Learning ACT: An acceptance & commitment therapy skills training manual for therapists (2ª ed.). Context Press/New Harbinger Publications.
Neff , K., & Germer, C. (2019).