
Neste texto, vamos explorar o conto A Caçada, de Lygia Fagundes Telles, sob a perspectiva da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) e entender como os conceitos de self e desfusão podem nos ajudar a não sermos engolidos pelas narrativas que criamos sobre nós mesmos.
A história do Caçador
No conto A Caçada somos apresentados a um personagem intrigante: o Caçador. Ele descobre uma antiga tapeçaria que retrata uma cena de caça e, pouco a pouco, se sente cada vez mais fascinado por ela. Até que, de maneira inquietante, é absorvido pela imagem — desaparecendo completamente.
O que isso tem a ver com nossa vida? Mais do que parece.
Quando nos perdemos na nossa própria tapeçaria
Quantas vezes você já sentiu que estava preso em uma história sobre si mesmo? Talvez um pensamento de que você sempre falha, que nunca será bom o suficiente ou que seu passado define seu futuro. Essas histórias, quando aceitas sem questionamento, podem ser tão envolventes quanto a tapeçaria do conto — nos engolindo, nos limitando, nos impedindo de agir.
Na Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), o conceito de fusão refere-se ao estado em que uma pessoa está tão identificada com seus pensamentos que os enxerga como verdades absolutas, regras ou comandos que precisam ser seguidos. Ou ainda, pensamentos sobre o passado ou o futuro podem parecer algo que está acontecendo aqui e agora, ou podem parecer muito importantes e exigir toda a nossa atenção.
Imagine que seus pensamentos são como óculos que você usa o tempo todo, sem perceber que pode tirá-los ou mudá-los. Quando estamos fusionados com nossos pensamentos, não questionamos se eles são úteis, realistas ou compatíveis com nossos valores — simplesmente os tomamos como verdade.
Por exemplo:
Pensamento: “Eu sou um fracasso.”
- Fusão: A pessoa acredita totalmente nesse pensamento, sente-se desmotivada e evita desafios.
- Desfusão: A pessoa reconhece que é apenas um pensamento, não um fato absoluto, e escolhe agir de acordo com seus valores.
A ACT propõe exercícios de desfusão para ajudar a criar um distanciamento saudável dos pensamentos, como dar um passo para trás, permitindo que a pessoa tenha mais flexibilidade psicológica e aja de forma mais alinhada com o que realmente importa para ela.
Em vez de ficarmos presos e emaranhados nos nossos pensamentos ou sermos dominados por eles, podemos deixá-los ir e vir como se fossem apenas carros passando na rua. Vemos os pensamentos pelo que são: nada mais nem menos do que palavras ou imagens.
O conceito de self na ACT
Além dessa conversa sobre fusão e desfusão, também podemos fazer um paralelo entre o conto e o conceito de self na ACT. Essa abordagem considera diferentes maneiras de nos relacionarmos com quem somos:
1. Self Conceitual (Self-Como-Conteúdo)
De uma forma bem resumida, seria quando nos identificamos rigidamente com pensamentos, rótulos e histórias sobre nós mesmos.
Refere-se a todos os pensamentos, ideias, imagens, julgamentos e memórias que formam o nosso autoconceito, a nossa autodescrição. É a história complexa e multifacetada que contamos sobre quem somos, incluindo fatos objetivos (como nome, idade, etc.) e avaliações sobre os nossos papéis, relacionamentos, forças, fraquezas, gostos, desgostos, esperanças e sonhos.
Imagine uma pessoa chamada Ana. Ela tem 30 anos, trabalha como engenheira e se vê como alguém que sempre foi apaixonada por matemática desde a infância. Ana também se define como uma pessoa introvertida, que prefere atividades solitárias como ler e pintar. Ela se considera uma pessoa determinada, mas tende a se criticar por não ser sociável o suficiente.
Ana pensa sobre si mesma da seguinte forma:
“Eu sou engenheira, sou introvertida, não sou boa com pessoas, sempre fui assim. Gosto de ficar sozinha, é quem eu sou. Não adianta tentar mudar.”
Neste exemplo, o autoconceito de Ana inclui aspectos objetivos, como sua profissão e idade, além de avaliações subjetivas sobre sua personalidade, preferências e autopercepção. Ela está identificada com essa história. Esses pensamentos não são vistos como pensamentos — são tomados como verdades absolutas.
Se Ana começar a se fundir demais com essa história que ela mesma criou sobre si mesma, isso pode limitar sua capacidade de se adaptar a novas situações ou de explorar novos aspectos de sua identidade, o que eventualmente pode causar desconforto emocional ou sofrimento.
Esse tipo de identificação rígida com o autoconceito é o que o conceito de Self Conceitual busca explicar, enfatizando como isso pode afetar nosso bem-estar psicológico quando nos tornamos excessivamente ligados às histórias que contamos sobre nós mesmos.
Se nos fundirmos com esta história, se começarmos a pensar que somos a história, isso pode levar a problemas e sofrimentos.
2. Self Observador (Self-Como-Contexto)
A parte de nós que pode observar nossos pensamentos e experiências sem se fundir a eles.
Refere-se ao processo contínuo de notar pensamentos, sentimentos, a respiração e outras experiências, como eventos passageiros, sem sermos dominados por eles, estando em contato com o momento presente.
É como a perspectiva de alguém que observa a tapeçaria, em vez de se perder dentro dela.
Se voltarmos ao exemplo da Ana. Imagine que Ana está em uma sessão de psicoterapia, praticando atenção plena (mindfulness). Durante um exercício, ela nota o pensamento:
“Eu não sou boa com pessoas.”
Mas agora ela o observa de outro lugar. Em vez de se fundir com esse pensamento, ela o nota com curiosidade e uma certa distância. Algo como:
“Estou tendo o pensamento de que não sou boa com pessoas.”
Ela percebe esse pensamento surgindo, reconhece que ele já apareceu antes, e observa como ele vai embora, como uma nuvem no céu. Ao mesmo tempo, ela nota sua respiração, o som ao redor, e o contato dos pés no chão.
Nesse momento, Ana não está fundida com a história. Ela está no papel de quem observa a tapeçaria — e não presa nos fios dela.
3. Self Como Processo
Nossa capacidade de entrar em contato com o presente e perceber que somos mais do que qualquer pensamento ou história.
É o “Eu” que nota o que quer que esteja a ser notado, é o espaço a partir de onde a observação acontece. Este aspecto de nós é contínuo e estável, mesmo que os nossos pensamentos, sentimentos e corpo mudem.
É como um lugar seguro dentro de nós que está sempre presente, de onde podemos observar o que acontece na mente ou no corpo sem sermos prejudicados. A ACT busca ajudar as pessoas a se conectarem com essa perspectiva de self mais ampla e flexível.
Vamos voltar para o caso da Ana. Durante o processo terapêutico, Ana começa a perceber que nem sempre se sente da mesma forma.
Num dia, ela pensa que é muito reservada e incapaz de se conectar com os outros.
No outro, ela se percebe rindo com colegas no trabalho, trocando ideias com leveza.
Num terceiro dia, ela se vê ansiosa antes de um encontro social, mas ainda assim escolhe ir.
Com o tempo, ela começa a notar que, mesmo com essas mudanças — de sentimentos, pensamentos, comportamentos — há algo nela que permanece presente:
“Existe um espaço em mim que percebe tudo isso acontecendo. E esse espaço não julga. Ele só está ali, notando.”
Ela começa a acessar essa perspectiva mais ampla. Um “eu” que não é definido por um pensamento específico, nem por um rótulo, nem por um humor do dia.
É como se Ana dissesse:
“Eu não sou só a engenheira. Nem só a mulher introvertida. Nem só a que tem medo de rejeição. Eu sou algo maior do que tudo isso. Eu sou esse espaço que nota tudo isso acontecer.”
Retomando, muitas vezes, ficamos fusionados ao self conceitual, formado por todas as histórias que contamos sobre nós mesmos — e nem sempre essas histórias são úteis.
O problema é que, quando nos identificamos rigidamente com esses pensamentos, perdemos de vista algo maior: nossa capacidade de observá-los.
No self como contexto, podemos notar nossos pensamentos sem sermos dominados por eles. Como um observador que enxerga a tapeçaria, sem ser sugado por ela.
Podemos dizer que o Caçador simboliza alguém que não consegue acessar o self como contexto. Ele fica preso em uma experiência interna rígida, sem a capacidade de se desapegar daquilo que o consome. A ACT nos ensina que, quando ficamos fusionados com certas histórias sobre nós mesmos, podemos perder a capacidade de agir com flexibilidade e liberdade — exatamente o que acontece com ele ao ser sugado pela tapeçaria.
Como sair da tapeçaria?
Se você sente que está preso em uma história sobre si mesmo, aqui estão algumas perguntas para ganhar perspectiva:
- Você sente que já se prendeu a uma história sobre si mesmo de maneira semelhante ao Caçador?
- Como seria observar essa história em vez de se perder dentro dela?
- O que mudaria se você pudesse acessar uma perspectiva mais ampla sobre quem você é?
E, como alternativa, algumas estratégias:
1️. Dê um nome para a história.
Em vez de dizer “Sou uma pessoa que sempre falha”, tente “Minha mente está me contando a história da pessoa que sempre falha. ” Isso cria um pequeno distanciamento, permitindo que você escolha se quer ou não acreditar nisso.
2️. Aja de acordo com seus valores, não com suas histórias.
Mesmo que seus pensamentos digam que você não é capaz, pergunte-se: “Que ação eu tomaria se não acreditasse nisso? ” E faça esse pequeno movimento.
3️. Pratique a observação dos seus pensamentos.
Imagine que seus pensamentos são nuvens no céu. Eles aparecem e desaparecem, mas você é o céu — não as nuvens. Quanto mais você pratica essa perspectiva, menos refém fica de narrativas rígidas sobre si mesmo.
Você escolhe onde estar
O Caçador desapareceu porque se perdeu na tapeçaria. Mas você tem uma escolha.
Você pode notar os pensamentos, perceber as histórias e decidir agir de maneira alinhada com quem quer ser. Se precisar de ajuda, entre em contato!
Se esse texto fez sentido para você, compartilhe com alguém que pode se beneficiar dessa reflexão. E me conta aqui nos comentários: você já sentiu que estava preso em na sua própria tapeçaria?
Referências:
Harris, R. (2009). ACT made simple: An easy-to-read primer on acceptance and commitment therapy. New Harbinger Publications.
Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (1999). Acceptance and commitment therapy: An experiential approach to behavior change. The Guilford Press.
Luoma, J. B., Hayes, S. C., & Walser, R. D. (2012). Learning ACT: An acceptance & commitment therapy skills training manual for therapists (2ª ed.). Context Press/New Harbinger Publications.
Telles, L. F. (1993). Pomba enamorada e outros contos (2ª ed.). São Paulo: Editora Siciliano.